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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A cultura melhora o ser humano?


Falsa cultura

A cultura melhora o ser humano? Pergunta impertinente ou simplória: quem ousaria dizer não? No entanto há zonas de sombras ambíguas nessa palavra. Um monstro recente da literatura e do cinema serve de exemplo. Thomas Harris, escritor norte-americano, criou em seus livros um personagem inteligente e culto, que era também um assassino cruel: o dr. Hannibal Lecter [foto].

Requintado, ele preza a grande cozinha, é historiador da arte e fino crítico de música sinfônica (em um dos filmes da série ["Hannibal"], realizado em 2001 por Ridley Scott, devora o flautista desafinado de uma orquestra!).

Não é o único exemplo. Sobretudo nos Estados Unidos, cuja mentalidade pragmática desconfia das sofisticações culturais, esse tema volta com frequência na literatura, no cinema, no teatro.
Se alguém é culto, é porque há algo de errado com ele: alguma perversão sórdida, algum impulso assassino, alguma crueldade deve se aninhar, secreta, nessa alma. Cultura não cheira bem.

Outro exemplo, ilustre e europeu. Richard Wagner [1813-83] foi um gênio musical. Venerado pelos nazistas, sua "Cavalgada das Valquírias" tornou-se, graças a eles, um motivo guerreiro destinado a exaltar o ânimo ariano conquistador de povos. Os nazistas, que trucidaram milhões de judeus, de ciganos, de comunistas, de homossexuais, reverenciavam a música admirável. Eles percebiam ali uma justificação emotiva para os horrores que cometiam -e que, está claro, eles próprios não sentiam como horrores. A dimensão desumana não é eliminada pela sofisticação da sensibilidade ou do pensamento.

Por vezes, certos retratos revelam que a cultura corrompe a pureza da alma, a energia espontânea. Sintoma de deliquescência, de decadência, de enfraquecimento, ela surgiria onde há falta de energia, de vitalidade, de virilidade.

Muita gente, por sinal, teme a cultura para seus filhos homens. Menino deve jogar futebol, e não ficar lendo livro, ouvindo ópera, indo ver exposição de pintura. É mau sinal. Quantos pais aceitam tranquilamente a vontade de um garoto de estudar balé - forma cultural particularmente crivada pelos preconceitos sexuais?

Cultura, coisa de pessoas privilegiadas, traz ainda uma inevitável marca de classe. Isso se espelha na oposição, que tantos proclamam, entre "cultura das elites" e "cultura popular", com desprezo por uma e valorização da outra.

Cultura é ainda desdenhada quando se suspeita nela o crime da erudição, mal-entendido como acúmulo estéril de conhecimento "não crítico". No entanto, qualquer um que tenha descoberto Picasso, Beethoven ou Dostoiévski sabe que as experiências oferecidas pela cultura modificam o espírito e que o melhoram. Percebe que sensibilidade, refinamento, estudo, saber e prazer imbricam-se nela. [...]

Artigo de Jorge Coli, publicado ontem na Folha.

4 comentários:

Anônimo disse...

Feil,
interessante essa sua análise. Eu não via o Lecter assim, como se o fato dele ser culto fosse o indício de que há algo de errado com ele. Eu entendia era que a cultura não o salvou, mas que apesar de tudo ela garantiu a ele uma certa ética pois ele só mata aqueles que cometeram algum mal. Os estadunidenses adoram justiceiros e sempre tiveram problema com comida, em qualquer filme você vê alguém comendo em excesso, cortando pizza com tesoura, sempre um desprezo pela alimentação, o Lecter é uma decorrência perfeita do modelo deles, justiceiro e canibal.
Mas eu concordo com o desprezo crescente em relação a idéia de ser culto. E será que não soa mesmo meio estranho falar de caviar quando estamos pensando em alimentação para a sobrevivência da humanidade? Na verdade acho que a maioria ganhou voz e quer acabar com privilégios. Que eles acabem então! Agora cabe aos cultos disseminar sua cultura para que sobrevivam.

Anônimo disse...

Não sei, não.
Acho que esse lero-lero todo para dizer "somos caras bacanas" muito suspeito.
Se era para eu ir com a cara do intelequitual, já teria simpatizado com ele desde o começo.

Parangolé disse...

Acho que você vai gostar desse site:

T.P.M.
Teoria e Prática da Mediocridade
http://guiatpm.wordpress.com/

Anônimo disse...

Engraçado um sociólogo dando aval para esse tipo de conceituação à cultura. Agora cultura é sinonimo de culto? Então os povos indigenas não posuem culturas né?
Prefiro o conceito de Geertz a esse "senso comum" que aqui não entendo como um sistema cultural.

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