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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

A vida do que está morto, se movendo em si mesma


A Narrativa

Fizeram um filme do romance apocalíptico do Don DeLillo chamado Cosmópolis. O diretor é David Cronenberg e o filme é sobre um dia na vida de um jovem financista, um dos mestres do universo, que comanda seus negócios internacionais de dentro de uma limusine impermeável enquanto lá fora o mundo - ou pelo menos Nova York - desmorona. No filme há uma fala, não sei se do DeLillo ou do roteirista, que define tanto o poder do jovem protagonista, que pode arruinar nações inteiras com um toque no seu celular, quanto o caos que o cerca. "Toda riqueza se transformou em riqueza apenas pela riqueza, e o dinheiro, tendo perdido sua qualidade de narrativa, passou a só falar com ele mesmo."

Perfeito. O dinheiro perdeu seu papel na grande narrativa do capitalismo que vem da acumulação primitiva de capital e da industrialização e chegou à globalização, e hoje é apenas um interlocutor de si próprio. A narrativa acabou, a riqueza se acumula entre poucos e beneficia ainda menos e o dinheiro, desobrigado de fazer sentido e de seguir qualquer espécie de roteiro, só produz monstros como o jovem financista do filme. O capital financeiro dita a história econômica do mundo e inventou uma nova categoria literária: o dialogo de um só.

Gostei de saber que um grupo de economistas de várias partes do mundo lançou um manifesto criticando o que parecia ser uma quase unanimidade - as exceções eram Paul Krugman e três ou quatro outros - a favor das medidas de austeridade e sacrifício de gastos sociais para combater a atual crise econômica global provocada pelo capital financeiro. O grupo reage à ortodoxia monetarista que faz a vítima pagar pelos desmandos do vilão e tenta interromper o autodiálogo do dinheiro endossado por tantos economistas. Felizmente, não por todos.

A grande narrativa do capitalismo foi excitante, enquanto durou. Revolucionou a vida humana e, junto com suas barbaridades , fez coisas admiráveis. Tudo que era sólido se desmanchava no ar, para ser recriado no ciclo seguinte. Mas nem Marx previu que seu fim seria este: no meio de um mundo em decomposição, o dinheiro falando sozinho.

Artigo de Luis Fernando Veríssimo, publicado hoje em alguns jornais do Brasil. 

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Permito-me discordar do Luis Fernando Veríssimo, a quem eu respeito e admiro. Marx previra, sim, a autonomia do dinheiro, esse "equivalente geral". 

Para Marx, o equivalente geral ascendeu à condição de mercadoria central e privilegiada do sistema, desbancando a mercadoria-trabalho, aviltada pelo crescente exército industrial de reserva. Todas as demais mercadorias querem "imitar" a capacidade de valorização do dinheiro, que é "a vida do que está morto [força de trabalho alienada na mercadoria, e esta transformada em moeda] se movendo em si mesma", na genial e primorosa síntese de Hegel. Portanto, antes de Karl Marx, o velho Hegel, de quem Marx se abebera o tempo inteiro, já previra esse "mundo em decomposição" - de que fala o Veríssimo. 


A propósito deste tema tão atual e complexo, e espichando o debate, eu reproduzo abaixo um artigo que toca nestas questões lembradas pelo nosso admirável LFV. 

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O velho Hegel apontou o hoje 
ou 
O real enfeitiçado


“O indivíduo está sujeito à completa desordem e aos riscos do todo. A massa da população está condenada ao trabalho embrutecedor, insalubre e inseguro das fábricas, manufaturas, minas, etc. Ramos inteiros da indústria, que sustentam largas faixas da população, entram subitamente em falência, seja porque a moda mudou, seja porque os valores de seus produtos caíram por conta de novas invenções em outros países, seja por qualquer outra razão. Massas inteiras são assim abandonadas à irremediável pobreza. O conflito entre a extrema riqueza e a maior pobreza, uma pobreza incapaz de melhorar sua situação, aumenta sempre. A riqueza torna-se um poder predominante. Sua acumulação se processa em parte ao acaso, em parte através do modo geral de distribuição. O lucro desenvolve-se em um sistema multiforme que se ramifica por setores nos quais o pequeno negócio não pode lucrar. A máxima abstratividade do trabalho penetra nos tipos de trabalho mais individuais, e segue ampliando sua esfera. Esta desigualdade entre riqueza e pobreza, esta indigência e necessidade, tem como resultado a desintegração completa da vontade, a rebelião interna e o ódio”.

Parece um texto marxista atual, um comentário - talvez - sobre a crise severa da Europa de nossos dias. Mas não é. Foi escrito por Hegel, por volta de 1804. Marx viria a nascer somente 14 anos depois, em 1818.

Hegel vai mais fundo nas suas premonições. Chegou a elas através da compreensão do conceito de trabalho e sua crescente centralidade na sociedade burguesa que se afirmava. Ele consegue descrever o modo de integração dominante em uma sociedade de produção de mercadorias em termos que prefiguram claramente a abordagem crítica de Marx, mas que seriam escritos quase 50 anos depois.

“O indivíduo – afirma Hegel – satisfaz as suas necessidades por meio do trabalho, mas não pelo produto particular do trabalho; este último, para chegar a satisfazer as necessidades do indivíduo, tem que se transformar em algo distinto do que é”. O objeto do trabalho que era particular, torna-se abstrato e universal, torna-se mercadoria passível de troca. No ato da troca da mercadoria há uma “volta à concretude”, como diz Hegel, e por meio dela são satisfeitas – socialmente – as necessidades concretas dos homens. Essa universalidade transforma igualmente o sujeito do trabalho – o trabalhador e sua atividade individual. O trabalhador unipessoal vê-se forçado a pôr de lado as suas faculdades e desejos particulares. “Quanto mais o homem domina seu trabalho – diz Hegel – mais impotente ele mesmo se torna. Quanto mais mecanizado se torna o trabalho, menor valor ele tem e mais arduamente deve o indivíduo trabalhar. O valor do trabalho decresce na mesma proporção em que cresce a produtividade do trabalho… As faculdades do indivíduo são restringidas de modo ilimitado, e a consciência do operário é degradada ao mais baixo nível de embotamento”.

Herbert Marcuse, um dos maiores estudiosos de Hegel do século 20 (junto com Kojève e Hyppolite), comenta que o filósofo “como que teria ficado aterrado com o que a sua própria análise da sociedade de produção de mercadorias acabara de revelar”. E teria deixado esses textos (Studien über Autorität und Familie e Zeitschrift für Sozialforschung) inacabados, ficando algum tempo sem escrever.

O pavor paralisante do filósofo derivou para uma solução autoritária, visto do prisma dos nossos dias. Ele propõe um Estado absolutista para coibir as deformações sociais através do império da lei. Hegel é tributário do idealismo alemão, para quem o homem, pelos efeitos da Revolução, veio a confiar no seu espírito passando a submeter a realidade aos critérios da razão. Ele chega a ousar dizer que “o pensamento deve governar a realidade”. Os alemães como não souberam fazer uma revolução burguesa, debruçaram-se arrebatados sobre um novo objeto filosófico: a Revolução Francesa. Assim, o que se convencionou chamar de idealismo alemão, por intermédio de seus filósofos Hegel, Kant, Fichte e Schelling, constituiu-se na própria teoria da Revolução Francesa. O clássico das revoluções burguesas. A fundação do mundo ocidental, tal como é conhecido. O advento de um sistema que – hoje – abisma-se no ocaso: o sistema produtor de mercadorias.

A prevalência da idéia de razão, comum a todo o pensamento Iluminista, implicava a liberdade de agir de acordo com a razão.

Hegel, nas suas cogitações, intuiu genericamente algo de extrema atualidade e importância para se entender o mundo da vida, algo que depois seria esmiuçado por Marx: o complexo tema da alienação. Para Hegel, a história do homem era, simultâneamente, a história da alienação do homem - como aponta Marcuse. As instituições e a cultura fundadas e criadas pelo homem acabam por desenvolver leis próprias, leis essas que irão subordinar a liberdade dos indivíduos aos desígnios do estranhamento e da alienação.

O tema da alienação é considerado um dos conceitos centrais de Marx.

“A depreciação do mundo dos homens – diz Marx – aumenta em razão direta da valorização do mundo das coisas. […] Quanto mais produz o operário com o seu trabalho, mais o mundo objetivo, estranho, que ele cria em torno de si, torna-se poderoso, mais ele empobrece, mais pobre torna-se seu mundo interior e menos ele possui de seu. […] O operário põe a sua vida no objeto, a partir de então, esta não mais lhe pertence, a vida pertence ao objeto. […] A alienação do operário em seu objeto apresenta-se, segundo as leis econômicas da seguinte forma: quanto mais o operário produz, menos ele tem para o consumo, quanto mais ele cria valores, mais ele se desvaloriza e perde a sua dignidade; quanto mais forma tem o seu produto, mais disforme é a sua pessoa; quanto mais alto grau de civilização apresenta o objeto, mais rude torna-se o operário; quanto mais poderoso é o trabalho, mais impotente é o seu criador; quanto mais o trabalho se enche de espírito, mais o operário se priva dele e torna-se escravo da natureza. […] Decorre deste resultado que o homem (o operário) não se sente mais livremente ativo senão em suas funções animais: comer, beber e procriar, assim como, ainda habitar, vestir, etc., e que em suas funções de homem ele não se sente mais que um animal. O bestial torna-se humano e o humano torna-se bestial. Comer, beber, procriar, etc. são, é verdade, também funções autenticamente humanas; mas isoladas abstratamente do resto do campo das atividades humanas e se tornando assim, o fim último e único, elas tornam-se bestiais”.

Assim, na modernidade do homem alienado, a consciência dos indivíduos está invertida, porque a própria realidade está invertida. A realidade do mundo das mercadorias é uma representação do real, não é o real. O real está enfeitiçado (fetichizado), reificado, transfigurado em representações subvertidas de sujeito e objeto. As mercadorias são sujeitos qualificados pelos homens, os homens são objetos quantificados pelas mercadorias. O homem sem qualidades, exaurido de humanidade, agora, não se humaniza, por que esbarra sem cessar na hostilidade dos objetos por ele próprio criados, mas que ele não os reconhece como seus. Há um objeto no meio do caminho da nossa humanidade. O nivelamento ético-moral dominante é uma metafórica sarjeta. O resultado dessa desumanização generalizada são os horrores do nosso cotidiano: a violência como reguladora da vida; a morte como normalização do conflito; a crescente fascistização das relações no trabalho, no trânsito, na vida urbana; o capitalismo de quadrilhas; a ciência que conspira contra a Natureza; a divinização do dinheiro; a dinheirização do corpo e dos afetos, etc., etc.

Karel Kosik diz que “Marx nunca abandonou a problemática filosófica, e que especialmente os conceitos de alienação, reificação, totalidade, relação de sujeito e objeto, que alguns canhestros marxólogos [KK refere-se aos stalinistas] proclamariam prazerosamente como o pecado da juventude de Marx, continuam sendo, ao contrário, o constante equipamento conceitual da teoria de Marx. Sem eles "O Capital" é incompreensível”. Sem eles o capitalismo seria incomprensível.

Foi, portanto, com fundadas razões que o nazismo na Alemanha investiu contra Hegel e seu pensamento idealista. Alfred Rosemberg e Carl Schmitt, dois dos principais ideólogos do nacional-socialismo, se pronunciaram furiosamente contra Hegel, dizendo que em conseqüência da Revolução Francesa, “surgiu uma doutrina de poder estranha ao nosso sangue; ela chegou ao seu apogeu com Hegel e foi, então, em nova falsificação, retomada por Marx”. Schmitt chegou a dizer que no dia em que Hitler subiu ao poder, “Hegel, por assim dizer, morreu”.

Isso prova que a força de uma filosofia deve ser avaliada, para muito além do seu valor em si, mas pelos frutos que pode gerar e, sobretudo, pelas mãos que a apedrejam. Cada um a seu modo, tanto Hitler quanto Marx, valorizou como pôde o velho professor alemão.

No presente tempo global de crise terminal, regressismo, boçalidade, “fezes, maus poemas, alucinações e espera” (Drummond), uma visita aos clássicos ilumina o espírito e aquece o coração.

Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo. Publicado originalmente neste blog Diário Gauche, em 16/dezembro/2010.

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